Ao início nem me apercebi, só quando aterrei em S. Tomé e Príncipe é que pensei para mim mesmo: “Ok, eu estou mesmo a fazer isto, já não posso voltar atrás”. Queria muito fazê-lo, mas era uma responsabilidade enorme, sentia um misto de ansiedade e, medo, de não conseguir estar à altura.
Fomos avisados várias vezes sobre a realidade daquele país: O que poderíamos encontrar, como deveríamos agir. Mas por muito que nos fosse dito, como mais tarde iríamos perceber, nada nos podia realmente preparar para aquilo. É algo pessoal, único: a forma como cada um de nós sente e, como cada um se envolve.
Ali estava eu, “preparado” para dar tudo de mim aquele país, aquelas crianças. Ao sair do aeroporto o primeiro contacto com a realidade: assim que passámos as portas, um grupo de crianças entre os 8-12 anos, ou nos pediam dinheiro, ou tentavam levar as malas para receberem alguma recompensa, de preferência dinheiro. “Como era possível? Crianças descalças a pedirem desta maneira?”.
Começámos pela roça Agostinho Neto, perto da cidade e das que tem melhores condições. A missão começava agora. O nosso objetivo era transmitir os direitos das crianças e jovens através de jogos e de pequenas cenas de teatro, sabíamos que não ia ser fácil ou que provavelmente não se iam lembrar de todos, percebemos que estávamos ligeiramente enganados. O nosso público era substancialmente maior do que estávamos à espera, apesar disso, no final conseguiram repetir os seus direitos. Isso deixou-me completamente rendido, se cá em Portugal já era difícil transmitir algum tipo de mensagem, precisamente por serem crianças e terem uma energia inesgotável, como é que ali, com crianças a viver em péssimas condições, muitas delas subnutridas tinha sido possível passar a mensagem com sucesso? Isso era bom, afinal estávamos a conseguir! Tínhamos a noção que aquele pequeno gesto que estávamos a ter não ia mudar no imediato a realidade do país, mas tínhamos esperança que aquela semente que plantávamos iria dar muitos frutos futuramente.
No final de cada apresentação íamos brincar com elas, falar. Talvez fosse melhor parte, era nessa altura que percebíamos quão necessitadas eram. Não falo do óbvio como alimentação, água, higiene e todas essas coisas que facilmente se percebe, falo do carinho, da necessidade do toque, do abraço, elas pediam isso, precisavam. Simplesmente não estavam habituadas, umas abraçavam fortemente, outras provavelmente devido a essa estranheza davam um abraço mais tímido, mas todas elas sorriam depois de um pequeno gesto como este. Lembro-me de nessa mesma roça um pequeno rapaz ter pegado nos meus braços e ter posto à volta dele, passado um pouco, quando tirei ele rapidamente os voltou a por à sua volta e disse-me para não tirar.
Era sempre triste a despedida. Sair das escolas com as crianças a acenarem, umas chegavam mesmo a correr atrás da carrinha, fazia-me refletir sobre tudo. Como é que há tantas pessoas a viver assim? A necessitar de tanto? Achei injusto, cheguei mesmo a sentir-me culpado por ter tão mais do que as crianças que lá viviam, esse sentimento de culpa foi ultrapassado ao longo da semana, mas esse primeiro impacto que houve foi avassalador, fez-me questionar tudo, fez-me querer ajudar cada vez mais.
Durante essa semana fomos a algumas escolas, umas em que as crianças interagiam mais, outras um pouco menos, mas saímos sempre com a sensação de dever cumprido. Entre todas elas há uma que tenho de destacar, foi com certeza a que mais me marcou e tocou: Monte Café.
Uma apresentação como todas as outras à exceção de uma rapariga que estava na fila da frente. Era tímida, não queria responder a nada e quando no meio dos jogos tentava falar com ela simplesmente escondia a cara e ria-se. Quando a apresentação terminou, como de costume fomos para o exterior, para as brincadeiras. Tentei mais uma vez meter conversa, perguntar o nome e, com mais ou menos embaraço, lá me respondeu. Fomos falando, tentei perceber se tinha gostado e a verdade é que a timidez inicial já tinha desaparecido. Quando fui para uma roda onde estavam a decorrer uns jogos deixei de a ver, mas quando ela voltou, foi ter comigo e muito envergonhada deu-me uma flor e disse “é para ti”. Um gesto que toca qualquer um. Já estava completamente encantado, por alguma razão aquela rapariga tinha gostado de mim, e fazia questão de o demonstrar.
Quando nos disseram que estava na hora de partir, fiquei triste como acontecia sempre. Fui ao pé da tal menina para me despedir, deu-me um abraço, e no final fez-me duas perguntas que me deixaram sem palavras: “ Quando é que voltas?” e “ Eu gostava que fosses meu padrinho, podes ser?”. Não estava de todo preparado para aquilo, o que é que ia dizer? Que só voltava para o ano? Não, não o podia fazer, embora soubesse que era verdade não o consegui dizer, “assim que conseguir volto” foi o que me saiu. Quanto à segunda pergunta nem me lembro se respondi, foi completamente inesperado, eu queria dizer que sim mas não sabia sequer se era possível isso acontecer. Dei-lhe outro abraço e fui-me embora de coração nas mãos, prometi que ia voltar, não disse quando, apenas que iria à procura dela.
Foi uma semana espetacular, aprendi muito, cresci muito. Apesar de não ser fácil acho que é importante percebermos que existem realidades opostas à nossa, há muita gente a viver assim, a precisar de nós, não podemos ficar indiferentes. Apercebi-me que apesar de todas as dificuldades as crianças não viviam tristes, sorriam, brincavam, bastava um pequeno gesto, um objeto, para elas significava bastante. Nas escolas ao entregar balões normais, dos que se usam nas festas, todas as crianças iam ao nosso encontro para ter um, e ficavam com um sorriso de orelha a orelha com uma coisa que para nós não é nada.
Seria impossível falar desta minha primeira experiência de voluntariado internacional sem referir o grupo em que fui inserido. Sem eles a viagem não teria sido a mesma. Fomos um grupo muito unido em que me senti completamente integrado, um grupo que teve sempre especial atenção connosco (os 4 mais novos) e que nos foi orientando no decorrer da semana.
Fica quase tudo por fazer, naquela terra onde fomos tão bem recebidos, mas todos temos a noção que fizemos tudo o que estava ao nosso alcance e que isto foi apenas o início de algo que queremos continuar a fazer, seja onde for que precisarem de nós.
“Fomos de malas cheias, voltamos de malas vazias mas com o coração cheio”
Autor: Carlos Xavier