Uma escuta corrosiva
Quando era criança, o meu pai dizia-me: minha filha, como é que vivi 30 anos sem ti? Quando era criança a minha mãe dizia-me: eu amo-te. Quando era criança, ficava em casa e era acarinhada. Quando era criança, tinha uma casa, tinha um quarto, uma cama, um colchão. Quando era criança dormia com os meus brinquedos: na minha cama estavam sempre o Noddy e a Ursa Teresa. Quando era criança, via desenhos animados vezes sem conta. Tinha um computador, televisão. Quando era criança, comia e bebia. Quando era criança , ia ao médico e era tratada. Quando era criança , deitava-me no peito da minha mãe e adormecia em menos de dez minutos. Quando era criança , deitava-me no meio dos meus pais e ficava no quentinho. Quando era criança , tinha casacos para me poder abrigar do frio. Quando era criança , sorria. Desenhava. Saltava à corda. Jogava à bola.
Tinha uma casinha de bonecas. Quando era criança , ia à escola com chão de alcatrão. Ia de férias, cheguei a ir visitar a minha tia que vivia no Brasil. Lia. Quando era criança , a minha mãe levava-me ao cabeleireiro e o meu pai ao dentista. Quando era criança, ia ver espectáculos. Quando era criança tive medo de palhaços, quando me levaram ao circo. Quando era criança, podia condizer a roupa, assim como os sapatos – tinha um armário cheio de tudo. Quando era criança, tinha os olhos todos postos em mim. Quando era criança, ouvia constantemente: queres alguma coisa? Os meus olhos brilhavam nesse momento e não podia deixar de pedir algo. Quando era criança, ficava aborrecida com um não. Quando era criança, punha-me em cima dos ombros do meu pai e fingia voar. Quando era criança, também fazia birras e chorava. Quando era criança, lambosava-me a comer gelados. Quando era criança, era feliz!
Agora cresci e percebi que nem todas as crianças tiveram a mesma sorte. Agora cresci e o meu mundo abriu-se. Agora cresci e tenho 15 anos. Agora cresci e vivo em Macau, embora seja portuguesa. Agora cresci e sou uma menina do mundo. Agora cresci e faço voluntariado. Agora cresci e foi-me confiada a mais dura missão que alguma vez enfrentei: pisar S. Tomé. Pisar uma realidade dura e cruel.
Durou uma semana e naqueles 7 dias, naquelas 168 horas, o meu coração foi entregue às mais duras – e também às mais doces – emoções. Fiz as mais bonitas aprendizagens: aprendi que podemos ser heróis sem capas, super-poderes, títulos ou talentos. Que temos o poder de, com simples toques de amor, que assim se torna mágico, tocar o coração do outro, ao fazer chegar-lhe o nosso. Sim, vi crianças a pedir os restos da nossa comida. E percebi que não há água potável e há várias doenças; sequer há água para fazer uma simples cirurgia. Vi crianças com os pés lastimáveis, porque descalças; com os pés desencaixados:ora o chinelo era muito grande, ora era muito pequena. Vi educadoras a emocionarem-se com a quantidade de material dado, por nós, às escolas. Ouvi a suave voz das crianças: ”fica”. Ouvi professores a dizer que, seguramente, muitas das crianças não iriam sobreviver. Senti todos aqueles abraços, apertos que eram expressão da carência daquelas crianças. Senti o bater ansioso do meu coração quando elas me agarravam bem forte. Guardei o toque da minha mão fortemente agarrada pelas mãos delas. Senti o meu coração a partir de cada vez que uma criança me pedia algo que eu não podia dar. Vi a miséria, que falava bem alto. Vi jovens rotos, subnutridos. Vi-os a correr para o pão como se nunca tivessem comido um. E pensava como, para nós, um pão é um alimento muito banal. Observei as expressões deles: expressões humildes. Vi o entusiasmo, a alegrias pela atenção que estavam a merecer. E senti os meus olhos molhados ao deixar aquelas crianças todas para trás. Diante dos meus olhos, estava uma realidade tão completamente diferente da minha, um mundo cruelmente pobre, que muito me comoveu. Uma realidade que precisa de ser olhada, escutada pelo mundo, que merece ser ajudada.
Quando era criança jogava ao telefone estragado.
Percebi, agora, que o mundo é um telefone estragado. Percebi que só nos chega o que é programado chegar-nos. Percebi o quão o mundo está feito de injustiças e contrastes.
Quando eu era criança o telefone estragado jogava-se com frases. Agora cresci e percebi que funciona com realidades, já que as mais pobres não podem ser escutadas e a mensagem final acaba sempre a ser a do mais rico.
Nelson Mandela disse: “Democracia com fome, sem educação e saúde para a maioria, é uma concha vazia.”; Paulo Freire declarou-se, dizendo: “A educação não transforma o mundo. A educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”. Eu, Teresa Fernandes, digo: que a mensagem de esperança nunca se rompa, que o mundo se une e que em sinfonia lutemos para que toda a criança tenha direito à igualdade, a um nome, a uma nacionalidade, a proteção, a casa, família, carinho, educação, saúde, socorro. Que toda a criança tenha direito a brincar, que toda a criança tenha direito a ser criança!
Autora: “Tecas”